Era fim de tarde, quase noite, quando começou a perceber... havia pedido um café expresso... seus amigos entravam por rumos desconexos de conversas, do condor da musica iam à ditadura no Chile e terminavam no futebol argentino. Ele olhava o movimento da cidade pela varanda do prédio... um dia comum... todas aquelas pessoas... nunca havia se dado conta delas... no seu dia-a-dia eram invisíveis... já tinha decorado o movimento automático da cidade... desviava de alguém que mexia no celular, parava no sinal esperando que fechasse o transito, escolhia uma das tantas rotas que se pode tomar no centro pra ir a alguma parte... tudo isso sem se perceber... sem se lembrar de nenhum daqueles rostos e panfletos que acumulava uma caminhada na cidade... e também agora, enquanto olhava o movimento da cidade, não percebia a figura humana ali... tudo o que podia ver era o fluxo de pequenos objetos ambulantes em meio ao vale que eram as ruas... aquelas pequenas coisinhas quando vistas da varanda, naquele movimento coletivo, se comportavam como água... e ele também era uma delas... em outros momentos do dia...
Seus amigos falavam agora dos povos nativos e o cacau... chamava-lhe a atenção isso... cacau... esse pequeno acaso dessas conversas caóticas tão comuns o tirou do transe hipnótico do vai-e-vem da cidade e o colocou num mais profundo: o das lembranças... lembrou de um sonho recorrente que tivera no passado... não sabia bem quando mas o havia sonhado há muito tempo... via-se como um caboclo sentado embaixo de um pe de cacau num fim de tarde... tinha nas mãos o miolo de uma fruta de cacau e do seu lado uma foice (própria daqueles que colhem o cacau)... isso era tudo o que se lembrava quando acordava... visitava-lhe esse sonho sempre que se esquecia dele... ate que um dia esqueceu simplesmente.... Sempre havia visto isso com um ar de nevoa... no sonho se via de fora do corpo... como se observasse a si mesmo... mas agora lhe viera essa imagem como lembrança... ele, mesmo que em sonho, era um caboclo colhedor de cacau.... pensou sobre restante de suas lembranças... não só o passado, mas tudo o que podia entender como sua vida tinha um ar de nevoa.... Percebia agora que sua vida sempre lhe pareceu um sonho... que sempre teve esse mesmo ar... percebia isso porque lhe parecia concreta essa lembrança que acabava de resgatar... sentia pela primeira vez o peso de nunca ter tido uma vida real...
Olhou para o seu reflexo no conteúdo da xícara... sentia-se estranho... sentia como se aquela imagem que estava ali, olhando com estranhamento em sua direção, não fosse só imagem... aproximou-se... viu o abismo das bordas escuras... sentiu uma vontade imensa de pular... pulou... jogou-se dentro do limbo de café... quando percebeu havia se perdido em meio aquele liquido negro.... Nunca mais foi encontrado... tomou conta de seu corpo outro homem... que não bebeu mais nenhuma xícara de café em vida...
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