Quando minha irmã e eu éramos crianças, eu me lembro, ela brincava de bonecas. Ela tinha bonecas de muitos tipos, nenhuma muito cara, e suas amigas traziam outras para brincar. Eram várias bonecas de vários tipos diferentes. Todas de uma mesma etnia, ou de etnias muito parecidas, eu não me lembro de minha irmã ter tido uma boneca negra. Bonecas, quando eu era criança, gostavam de vir com os olhos pintados de azul. Eram assim as bonecas, se bem me lembro.
Estudei em uma escola mista, onde os alunos mais velhos dividiam o espaço durante os intervalos com os mais novos. Eu me lembro de um dia, quando eu estava no pré-primário, durante o recreio, eu morava perto de um bairro predominantemente negro, a Vila Santa Cruz, vi alguns garotos negros conversando, eram muitos. Mesmo com tantos negros no mundo, em minha sala de aula não tinha nenhum. Eu estranhava aquela cor de pele, aqueles modelos de rosto, aqueles tipos de sorrisos. Eram diferentes, não tinha dúvidas disso. Eu me lembro exatamente da sensação. Lembro também de ter pensado que não queria estudar no ano seguinte com algum daqueles meninos, intimamente eu pedia a Deus que me separasse eternamente dos negros.
No ano seguinte eu mudei de escola, fui para um bairro mais pobre, mais próximo da minha casa, era um bairro com bem menos negros. Lembro de ter apenas dois, em minha sala, pode ser que havia outros, mas eu me lembro de dois, somente: uma menina que chorava muito, por qualquer coisa; um menino, que, calhou sentar à minha frente. Acho que o destino e eu havíamos esquecido do pedido que eu fizera, logo aquele menino se tornou um grande amigo de escola, é verdade que eu não me lembro mais do seu nome, mas ele foi o meu primeiro amigo na escola. Com ele, lembro bem, aprendi que se jogássemos água aos olhos quando estivéssemos com sono, acabava-se com o sono. Nunca achei que isso funcionasse bem, mas como faço isso até hoje, sempre me lembro desse menino mal desenhado em minha memória e do qual eu não sei o nome. Tive outros amigos depois dele, mas não me lembro de nenhum que, por tão pouca coisa, me fizesse adquirir um hábito tão arraigado, mesmo sem ter me convencido.
Enquanto éramos amigos, eu nunca me lembrei daqueles meninos negros conversando no pátio ou da sensação que aquilo me produzira. Somente depois de anos minhas lembranças perfilaram os dois acontecimentos, separados apenas por um curto espaço de tempo de menos de um ano. Quando somos adultos, um ano não é o suficiente para separar dois eventos, mas, quando se tem seis anos de idade, um ano pode produzir entre um evento e outro o mesmo efeito que o Oceano Atlântico causa entre a América e a África, a distância.
por Tarlei Melo, em: ( http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=25978687&tid=2544584656914551028 )
Um comentário:
Meu Deus, como alguém faz com tanta simplicidade um texto tão belo?
E isso me faz ver claramente que os preconceitos um dia vão, um dia voltam, ou um dia vêm, ou raramente nunca vêm. Este último...só em relação a algo tem bobo. De resto, infelizmente, temos inúmeros preconceitos. Mas pra quê?
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